
Quarto de Despejo - diário de uma favelada
- odisseialiterariaa
- 26 de out. de 2023
- 5 min de leitura
Carolina Maria de Jesus nasceu no dia 14 de março de 1914. Viveu humildemente, com pouco contato com os estudos, frequentando por dois anos o colégio Allan Kardec - primeira escola espírita do Brasil, onde crianças desvalidas eram sustentadas por pessoas influentes, Carolina era sustentada na escola pela Sra. Maria Monteiro, para quem sua mãe trabalhava como lavadeira. Em 1937, se mudou para São Paulo, época em que a cidade dava seus primeiros passos no processo de modernização e via o surgimento de suas primeiras favelas. Carolina e seus três filhos conviviam com a trágica realidade do cotidiano na favela do Canindé, sua fonte de renda, que custeava uma sobrevivência miserável, se baseava em catar papéis e outros materiais recicláveis. É nesse contexto que Carolina registra seu cotidiano, relações e sentimentos em cadernos encontrados durante seu trabalho - elaborando diários - que posteriormente foram publicados, dando vida ao livro “Quarto de despejo - Diário de uma favelada”, que narra a percepção da autora com o ambiente onde vive, a rotineira luta contra as mazelas - principalmente contra a fome - pela sobrevivência de sua família, objeto de discussão para essa resenha.
Publicado originalmente em 1960, a obra ganhou um forte destaque por se tratar de uma proposta narrativa que ia contra as demais publicações literárias da época. Chamo atenção nesse momento para dar destaque ao modo como Maria Carolina de Jesus recebeu a oportunidade de ter seus manuscritos publicados: na década de 50, Carolina presenciou a depredação de brinquedos instalados para crianças em uma praça próximo de sua comunidade e ameaçou denunciar a atitude, essa situação foi vivenciada pelo jornalista Audálio Dantas, que ao entrar em contato com Carolina, se interessou pelos seus diários e por sua história de vida, e se demonstrou disposto a reunir as escrituras e publicá-las. Vale evidenciar também a recepção do público com a obra: na primeira edição foram vendidos trinta mil exemplares, na segunda e terceira edições, cem mil. Além disso, foi traduzido para outros 13 idiomas e alcançou mais de quarenta países.
No desdobramento da narrativa, o leitor acompanha a descrição de Carolina do seu dia-a-dia separado por datas, como um diário de fato, em suas palavras reais. Durante a leitura é possível acompanhar a persistência diária de Carolina pela subsistência de sua família. Ela relata suas dificuldades, como foi seu dia de trabalho, como seus filhos se comportam ao crescer na favela, como seus vizinhos passam a lidar com a presença dela e das crianças, mas principalmente narra seus pensamentos ao se deparar com tantos impasses.
Carolina nos traz reflexões e posições extremamente politizadas, nos fala sobre negritude, sobre a fome, sobre a maternidade, sobre a situação política do país, sobre a cidade de São Paulo e suas configurações sociais. Percebemos algumas dessas pautas - mas não todas, por se tratar de um livro extremamente reflexivo e doloroso - nos seguintes trechos:
“[...] eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”
Em cada página do livro é possível observar como Carolina tem consciência do lugar em que está inserida, e do privilégio da posição social de outras pessoas, mas principalmente da falta de assistência dos políticos para com a sua realidade, que a cada decisão política só acabam depredando cada vez mais suas condições, também perceptível nos fragmentos:
“Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.”
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.”
Como mencionado anteriormente, Carolina nos revela também as dores - e, novamente, a consciência - do cotidiano de uma mulher preta e marginalizada com as construções urbanas da cidade de São Paulo, tão aclamada por uns, embora vivenciada em mazelas por outros. É quando a autora insere em seus escritos sobre a sua cor, mais uma forma de resistência que, de modo cansativo mas ainda sim, firme, Carolina é forçada a vivenciar.
“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro”
“13 de maio: Hoje amanheceu chovendo. E um dia simpático para mim. E o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.”
Como se não bastasse já tamanha comoção, em certos momentos de seu diário a autora ainda trata sobre ser uma mulher que agora é mãe, responsável por criar crianças dentro de uma favela, em meio às mazelas da violência e da fome. Considero uma das temáticas mais fortes abordadas no livro pois demonstra que, para a autora, mais angustiante do que viver naquelas condições, é ver seus filhos inseridos nesse contexto também:
“O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por não poder realisar os desejos dos seus filhos.”
“Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: Tem mais? Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais.”
Ler “Quarto de Despejo” para mim, foi como um doloroso desafio, posso dizer que se aventurar nestas páginas é até uma prova de coragem, por diversas vezes precisei pausar a leitura, pegar fôlego para finalmente conseguir dar continuidade. Encarar o forte relato da autora, expondo sua realidade impiedosa em palavras tão sensíveis e comoventes, causa angústia, empatia, mas principalmente raiva. É o livro mais pesado e angustiante que já li, nada mais cruel que encarar páginas que são o espelho de uma realidade marcada pela desigualdade social. É um sentimento de impotência maior ainda quando sabemos que milhares de outras pessoas também se encontram em um quarto de despejo,partilham dos mesmos sentimentos e sofrimentos da autora, mas não são assistidas e amparadas como indivíduos sociais. Apesar de se tratar de um manuscrito da década de 50/60, atualmente é considerada uma obra de importância imensurável justamente por abordar questões sociais tão sérias na percepção de uma mulher preta e marginalizada, que expõe de modo claro e impactante os desdobramentos sociais daqueles que vivem nas favelas brasileiras, dando voz e lugar para problemáticas por vezes esquecidas na literatura, na mídia e no cotidiano em si.
A nível de curiosidade, - e para enriquecer os conhecimentos sobre a autora e sua obra - após o sucesso de seu primeiro livro publicado, Carolina Maria de Jesus realizou uma de suas vontades: finalmente saiu da favela do Canindé. Se mudou para Santana, um bairro considerado classe média na cidade de São Paulo, e ainda em vida, publicou outros dois livros, sendo um deles de romance. Carolina acabou falecendo de insuficiência respiratória aos 62 anos, mas seu ofício como escritora foi honrado em outras seis publicações póstumas, compiladas a partir de materiais deixados por ela, aprimorando ainda mais o repertório de incríveis escritos publicados, que hoje celebram sua memória e resistência.

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