
A Paixão Segundo G.H: que falta faz uma barata.
- odisseialiterariaa
- 2 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. [...] Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.”
Sendo uma das maiores escritoras brasileiras, Clarice Lispector nos presenteia com obras introspectivas e cheias de sensações ao ponto de fazer com que o leitor sinta cada palavra escrita por ela. Clarice é de origem ucraniana, mas passou a maior parte da sua infância em Recife, onde ela começou sua paixão pela leitura e escrita, assim escrevendo pequenas histórias desde cedo. Os livros de Lispector sempre são repletos de epifanias, com um estalar de dedos ela nos mostra o que há de mais profundo no nosso ser. Não há palavras suficientes para explicar seus livros e os sentimentos que eles geram. Falar de Clarice é falar do infinito, falar do eu não consciente, de um eu inexistente até mesmo para nós. A obra escolhida irá retratar justamente esse “eu” inexistente, um eu esperando para emergir das profundezas do ser e que não vem para superfície por ter sido afastado demais de si próprio.
“Nesta minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir.”
Lançado em 1964, A Paixão Segundo G.H é um romance carregado de uma sensibilidade que é totalmente inerente à existência de Clarice Lispector. A obra nos revela um cotidiano banal e, ao mesmo tempo, com vários questionamentos sobre o que realmente é viver. G.H, a personagem narradora da história, consegue prender a atenção do leitor em seus devaneios enquanto entra para limpar o quarto sujo da empregada que tinha sido demitida e acaba se deparando com uma barata no guarda-roupa. A partir disso, a narradora entra em reflexões acerca da vida, da existência de Deus, da existência de si próprio na sociedade e no mundo, e nos leva às mais diversas crises existenciais (juntamente com ela).
A leitura é densa, difícil de digerir rapidamente, mas é isso que a deixa tão reveladora. A escrita de Lispector é simples e expressiva, mas o peso que cada palavra carrega transforma ela em uma lâmina poética, fazendo com que os sentimentos existentes ali nos perfurem profundamente até não aguentarmos nós mesmos. Cada capítulo é uma descoberta agonizante do que é a vida a nossa volta.
“Esperara encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito.”
G.H é uma mulher no alto do seu privilégio branco, morando em um apartamento de luxo e com muita condição para obter conhecimentos de si e da sociedade como um todo. Porém, em toda sua vida nunca parou para pensar sobre seu lugar no mundo como ser humano e social. Ao adentrar no quarto de sua ex-empregada, a protagonista esperava algo totalmente desorganizado e sujo, como se isso fosse o comum de toda pessoa pobre. Mas ela se surpreende com um quarto totalmente limpo e arrumado, a não ser pela barata presa entre as portas do guarda-roupa. É interessante perceber, ao longo do livro, como G.H vai se tornando cada vez mais oca por dentro para poder ser preenchida, mas afinal de que?
“A barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não consigo usá-la.”
A barata pode ser a representação de várias coisas, mas digo aqui que ela é o acordar dessa mulher tão perdida de si. Ela é a primeira e última criatura do mundo, ela é infinita e finita, é “o Deus” e o inseto. Essa barata é tão pequena e grande ao mesmo tempo que ela se transforma em um catalisador para a transformação e a autodescoberta de G.H. Ao se deparar com esse ser aparentemente repugnante em sua vida recheada de privilégios, a personagem é confrontada com uma realidade que transcende sua compreensão superficial do mundo.
A escolha de G.H de comer a barata representa um ato de confronto direto com o desconhecido e o inconsciente do seu eu mais profundo. Ao degustar o inseto que ela inicialmente percebe como repulsivo, a protagonista mergulha em uma jornada de autoexploração de si e transcendência. O ato de ingestão se torna um momento de ruptura com as convenções sociais e uma busca desesperada por significado.
Além disso, a barata também pode ser interpretada como uma metáfora para a própria existência humana: frágil, efêmera e muitas vezes repudiada pela sociedade. Ao confrontar a barata, G.H confronta sua própria mortalidade e fragilidade, se forçando a repensar suas concepções sobre si mesma e o mundo ao seu redor. No que se trata da religiosidade presente na obra, a barata também assume uma dimensão divina e transcendental. Ela representa não apenas a presença de Deus, mas também a sua ausência, desafiando as crenças e certezas de G.H.
G.H e a falta lacaniana
"Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido que é o sentido. Todo momento de "falta de sentido" é exatamente a assustadora certeza de ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque tenho garantias! A falta de sentido só iria me assaltar mais tarde. Tomar consciência da falta de um sentido teria sido sempre o meu modo negativo de sentir o sentido? fora a minha participação."
Ao compararmos a personagem com a teoria da falta em Jacques Lacan, a resposta da pergunta “[...] G.H vai se tornando cada vez mais oca por dentro para poder ser preenchida, mas afinal de que?” está na aceitação desta tão temida falta. Essa comparação nos envolve em um mergulho nas complexidades da condição humana com toda a sua delicadeza e profundidade.
A jornada de G.H é um passeio interior, uma busca incansável por preencher um vazio que ecoa dentro dela. Essa ausência, essa sensação de incompletude, ressoa em cada página da narrativa, como um eco melancólico da existência humana. É como se a personagem estivesse tentando encontrar um sentido, uma plenitude que parece fugir constantemente entre seus dedos.
Procurando preencher este vazio que a dilacera tanto, a protagonista ao confrontar barata – que para ela é um símbolo desse sentimento, já que a barata seria/teria tudo e ela nada –, a come na tentativa da resposta para essa falta vim à tona.
No entanto, assim como Jacques Lacan nos lembra, a falta é uma condição humana inevitável, uma lacuna fundamental que permeia nossa existência. A jornada de G.H é, portanto, uma jornada de perceber e aceitar essa lacuna que existe dentro dela, também é uma jornada de reconhecimento da incompletude intrínseca à experiência humana.
Assim, ao explorarmos a relação entre G.H e a teoria da falta em Lacan, somos convidados a refletir sobre as complexidades da condição humana com mais aceitação pelo nosso ser de falta. É como se Clarice nos convidasse a mergulhar a fundo na nossa própria alma, a confrontar nossos medos e anseios mais profundos, com toda a sensibilidade e delicadeza que caracterizam sua escrita genial.

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