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A Metamorfose: por que Gregor Samsa entrou para a “gangue dos literalmente eu”?

  • odisseialiterariaa
  • 3 de dez. de 2023
  • 4 min de leitura

Não é natural acordar para cumprir mais uma vez a rotina delineada da vida com um casco grosso e pesado nas costas e patas finas e peludas no lugar dos membros. A Metamorfose é um livro que, sem muito esforço, consegue nos convencer que isso, na verdade, é absolutamente normal e até esperado. E só uma geração jovem completamente afetada pelas consequências das desgraças sociais do século passado poderia compreender e assimilar tão naturalmente esse cenário que, mesmo apresentado há tanto tempo, ganhou uma visibilidade repentina e está sendo utilizado para identificar angústias contemporâneas.



O livro foi publicado em 1915 e relata, em terceira pessoa, o momento emblemático em que o caixeiro Gregor Samsa se vê na forma de um inseto imenso, passa pelo processo de definhamento devido à rejeição do pai, à omissão da mãe e ao tormento da irmã mais nova, até chegar na sua morte lenta e melancólica. Mas sabendo da história angustiante e nem um pouco convidativa que Gregor protagoniza, por que justamente esse personagem se tornou tão popular no mundinho twitter Brasil?



Há um bom tempo tem sido recorrente me deparar com várias referências em tom humorístico do livro de Kafka na minha timeline do twitter e, como todo meme, isso foi tomando proporções muito profundas e cada vez mais absurdas por causa do non sense que tem guiado o humor de certos nichos da internet, o que se agrega justamente tão bem ao surrealismo de A Metamorfose.



Esse fenômeno seria algo de se esperar pelo histórico perturbado da rede social, por ser o depósito dos pensamentos mais genuínos de jovens que não sabiam exatamente porque, mas sempre foram meio diferentes dos outros na época escolar e acabaram se dividindo ali entre os que desenvolveram depressão, os que viraram incel e os que já perderam total ou parcialmente a sanidade (podendo se encaixar também em mais de uma dessas categorias e no pior dos casos, que deus tenha piedade, em todas). A resenha contempla somente o primeiro e último grupo, pois os "literalmente eu" dos incels têm nuances bem mais sórdidas. A metamorfose acabou se perdendo por ali, cumprindo o papel bizarro de uma história underground que representa uma juventude que ri da própria falta de sentido na vida e faz disso sua identidade. Isso é muito singular na vista de quem não vive esse antro de referências tão específicas, que só o existencialismo poderia nos entregar, tão carinhosamente, de mãos dadas com o capitalismo tardio e o non-sense.


Parece complexo traçar um paralelo entre a baratona de Franz Kafka e esses termos recém nascidos na pós modernidade, mas é inegável que existem muitas camadas no cenário em que alguém diz se identificar com um homem que, após acordar de sonhos intranquilos, se encontrou metamorfoseado num inseto monstruoso.


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E é somente a frase emblemática que nos introduz ao conto surreal do século XX que nos interessa, ou melhor, interessa a bolha que descobriu Gregor, justamente por esse ser o acontecimento repentino e surreal da história, todo o resto são consequências específicas. O fator universal de identificação é a metáfora de acordar metamorfoseado em um inseto, fator esse que ao longo de décadas já foi discutido, desmembrado e alvo de reflexão na academia, o que os jovens fazem agora é depositar nessa situação seus sentimentos de não pertencimento, solidão, depressão e etc. Demonstrando como a metáfora foi absorvida profundamente por tantos e atestando, através da arte, como nossas experiências nunca são individuais.




A identificação com a conformidade de Gregor, ao se ver metamorfoseado, também perpassa por especificidades de gênero. As meninas, que estão cronicamente online, viram a oportunidade de descrever suas experiências angustiantes através da baratona mais querida das redes! Estar num corpo feminino e conceber que tudo gira em torno disso é uma condição que agrava ainda mais a vivência, nesse caso, da juventude e quando se acha um lugar seguro que traz o conforto de lidar com isso por meio do humor é um alívio por conseguir naturalizar a vida junto de outras meninas, que entendem perfeitamente as nuances tão particulares que atravessam as experiências físicas e emocionais de ser e se entender como uma mulher no mundo.



No geral, transformar a situação de Gregor numa linguagem universal para descrever seus sentimentos ruins é uma forma da juventude se comunicar para explicar sua angústia e buscar o conforto de saber que todos estão passando pela mesma situação geracional, a qual, apesar de ser uma solução aparente para a solidão dessas pessoas, é mais um fator individualizante que faz os jovens tender a não buscar uma via para erradicar esse contentamento paralisante diante das suas realidades tão amargas, mesmo percebendo que se trata de um problema social, já que todos passam pela mesma situação, a tomada dessa consciência aliada a falta de alternativas é o que desenvolve a depressão nesses mesmos jovens. O capitalismo tardio é descrito dessa forma, saber onde está o problema, mas se conformar pela falsa impressão de que ele não pode ser solucionado e o existencialismo ressurge como uma filosofia que acentua essa concepção entre os jovens, aqueles com mais potencial para tomar frente na prática da resolução dos problemas trazidos pelo nosso atual modo de produção.



Entender “A Metamorfose” como uma obra que reflete a agonia de uma geração inteira é perceber, também, porque e como se dá o processo de um livro se tornar clássico. O poder de continuar a impactar um século depois é tão relevante ou mais do que na época em que foi publicado, ultrapassando barreiras de tempo e espaço, ganhando novas nuances e interpretações de acordo com a materialidade. Apesar dessa popularidade repentina não ter ganhado profundidade na história em si, esse é um começo para se vislumbrar no campo da disseminação da literatura entre os jovens. É importante compreender como eles se vêem e querem se ver retratados na arte, seja abordando seus sentimentos bons ou ruins e é necessário alguém que medie esse processo de identificação, para que não se resuma a cair na naturalização do sofrimento. Gregor Samsa é literalmente nós porque ele achava que precisava solucionar seu dia de falta no trabalho, sem pensar se no dia seguinte ele ainda seria aquele inseto monstruoso, sem pensar na verdadeira raiz do seu problema.

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Vitória Ribeiro
Vitória Ribeiro
May 03, 2024
Rated 4 out of 5 stars.

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