
O Morro dos Ventos Uivantes – Uma análise da história de romance que não deve ser romantizada.
- odisseialiterariaa
- 15 de set. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 3 de mai. de 2024
Publicado em meados de 1847, O Morro dos Ventos Uivantes – Wuthering Heights, em inglês –, é o único livro publicado por Emily Brontë, que juntamente com as outras irmãs, Charlotte e Anne, ficaram conhecidas como As irmãs Brontë.
Sendo você um apaixonado por literatura clássica ou não, pelo menos alguma vez na vida deve ter ouvido falar de obras como A inquilina de Wildfell Hall, Jane Eyre ou O Morro dos Ventos Uivantes (título desta resenha), certo? Escritos por autoras inglesas numa época em que havia muito pouco espaço para as mulheres na literatura, as três tinham em comum algo mais além da paixão pela arte da escrita e o gênero: eram irmãs.
E as três publicaram seus livros sob pseudônimos masculinos pois sabiam que não haveria outra forma de publicá-los se não fosse assim – a sociedade naquela época não via com bons olhos mulheres que escreviam, e principalmente, escreviam obras como as quais as irmãs Brontë escreveram, dando enfoque às personagens femininas e mostrando o lado nu e cru da personalidade humana, seus erros e acertos, o bom e o mau.
A princípio, o título de Emily Brontë leva-nos a imaginar tratar-se de uma história de romance entre os irmãos afetivos Catherine e Heathcliff – o que por si só já causa o mínimo de estranhamento, já que, bem, estamos falando de irmãos relacionando-se romanticamente –, porém, no decorrer dos capítulos, ouso dizer, nos primeiros parágrafos da obra, as reviravoltas na história deixam explícitas que um romance água com açúcar e um final feliz clichê, não farão partes da trama.
Nessa obra, Emily Brontë deixa em evidência nas características e ações de seus personagens, desvios de conduta humana como a maldade, o egoísmo, obsessão, crueldade – e talvez por isso, mesmo sob o pseudônimo masculino, o romance não foi poupado de duras críticas por conta da sociedade londrina da época, uma vez que estes estavam acostumados à boa conduta e boa índole dos personagens em outras tantas obras.
Ambientada por volta do ano de 1800, numa propriedade rural da Inglaterra, a história é principalmente narrada pela governanta da família Earnshaw, Nelly Dean, que vivencia de perto os amores e dissabores na complicada relação entre o casal protagonista, suas escolhas e como estas culminam em seu trágico fim, chegando a atingir as gerações futuras que "pagam" pelos erros dos outros.
Em um rápido resumo, o patriarca da família, Sr. Earnshaw, encontra nas ruas de Liverpool, abandonado, sujo e pedindo esmolas, um menino de aparência cigana (por ter a pele escura). Compadecido pela situação da criança a quem ninguém reclamou, o mais velho resolve levá-lo para casa a fim de que o menino tenha um futuro melhor do que padecer nas ruas, batizando-lhe de Heathcliff e instruindo que a governanta dê banho no garoto, vista-o com roupas limpas e deixe-o com seus filhos.
Enquanto a pequena Catherine de início mostra-se inquieta com a chegada do garoto para em seguida aceitá-lo e criar um forte vínculo que mais a frente evolui para um caso de amor, o mesmo não pode-se dizer da reação do mais velho, Hindley Earnshaw, que, como os outros, por preconceito pela origem desconhecida do menino, é contra a ideia do pai. Inclusive, essa relação preconceituosa perpetrada por Hindley e os demais habitantes do Morro, teria modelado a personalidade adulta agressiva de Heathcliff, uma vez que fora dos olhos atentos do Sr. Earnshaw, o mais velho e os criados, tratavam-no com abusos e humilhações, fazendo-o jurar tornar a vida destes um verdadeiro martírio.
A clareza de detalhes narrativos, principalmente no que diz respeito ao ambiente da propriedade dos Earnshaw e das características dos personagens, é outro ponto que faz saltar aos olhos a singularidade da obra, uma vez que nada escapa da narradora que compartilha-os com o leitor, fazendo-o ter a sensação de estar inserido dentro da história. É também a narradora quem dá detalhes da criação dos Earnshaw e explicita que, mesmo que Heathcliff tenha tido a mesma educação dos outros dois, há algo soturno em sua volta, o que poderia vir de sua origem cigana:
"É um cigano de pele escura no aspecto e um cavalheiro nos modos e no trajar, ou melhor, tão cavalheiro como tantos outros fidalgotes rurais um pouco desmazelado talvez, sem contudo deixar que essa negligência o amesquinhe no seu porte altivo e elegante, se bem que taciturno."
Após a morte do Sr, Earnshaw, o filho mais velho é quem assume a herança do pai e a partir desse ponto, tanto o relacionamento entre ele e Heathcliff, quanto com Catherine passa a se deteriorar cada vez mais, uma vez que Hindley o impede de continuar como um dos herdeiros e manda-o para os afazeres como um dos criados da casa. Sobre essa parte, mesmo que seja descrita como uma jovem de temperamento impetuoso e faça juras de amor a Heathcliff, nota-se que Catherine faz pouco ou quase nada em relação a essa situação, o que não é de fato um problema, tendo em vista que a história retrata de forma ácida e irônica, a sociedade daqueles tempos, e certamente, a mocinha indo de encontro às escolhas do irmão para defender o amado, não seria um retrato fiel da realidade opressora da época.
No entanto, em outros trechos evidencia-se que Catherine coloca sua posição e status social acima do amor que sente por Heathcliff, como quando, por exemplo, confessa a Nelly que apenas não se casaria com ele pois isso iria arruinar sua reputação perante a sociedade – Catherine o ama, mas não o suficiente para largar a vida de luxo a qual está acostumada e enfrentar os julgamentos dos outros.
"Seja qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais".
Por fim, para a felicidade de Hindley, ela aceita casar-se com Edgar Linton, herdeiro bem nascido de uma família abastada, jovem de temperamento fácil e tal decisão mudaria de vez os rumos da história. Heathcliff desaparece por três anos, e ao retornar, já é um cavalheiro de posses e Catherine uma mulher casada, o que, no entanto, não impede que os dois passem alguns momentos juntos novamente até separarem-se de vez, e ele, movido pela raiva e desejo de vingança, resolve fugir com a irmã mais nova de Linton, Isabella.
Após isso, Catherine adoece durante a gravidez e morre enquanto dá à luz a uma menina que recebe seu nome; Isabella foge dos domínios de Heathcliff e dá à luz a um menino que se chamará Linton – rapaz que é usado pelo próprio pai, anos depois, para atrair Catherine Linton e forçá-la a casar com ele para que este fique com todos os seus bens, uma vez que ela é a única herdeira de Edgar, que faleceu pouco tempo depois. Assim, a vingança de Heathcliff contra todos aqueles que o impediram de estar junto a sua amada, estaria concretizada.
De certa forma, a personalidade de Heathcliff, tida como agressiva e desprezível, e suas atitudes igualmente contraditórias para o que a sociedade daquela época esperava de um protagonista masculino, é nada mais nada menos que o resultado das ações daqueles que deveriam tê-lo tratado de outra forma que não com desprezo e hostilidade. Não quero aqui dizer que isto justifica as ações contraditórias de Heathcliff, muito menos defendê-lo, no entanto, como expõe o filósofo Jean-Jacques Rousseau, acredito que o homem seja naturalmente bom desde seu nascimento e que a vida em sociedade (o mundo) é quem o corrompe levando-o a caminhos obscuros. Ou seja, as ações de Heathcliff nada mais são que os reflexos das contradições que permeiam a sociedade humana; o contexto é o que o faz ser quem ele é, frio, calculista, agressivo e maldoso para com todos aqueles que o cercam.
O Morro Dos Ventos Uivantes e Sigmund Freud
A teoria da psicanálise desenvolvida por Sigmund Freud é a responsável por muito do que sabemos hoje sobre a psique do funcionamento humano. Em seus postulados, Freud conceituou um novo modelo da mente humana que coexistiu com suas ideias anteriores sobre consciência e inconsciência, referindo-se a três modelos do aparelho psíquico sendo eles: Id, ego e superego. Com Emily Brontë, cada um deles é representado por um dos três personagens principais, sendo o ego (a parte consciente refere-se a Catherine), o superego (parte moral referente a Edgar Linton) e o id (inconsciente formado por impulsos, por Heathcliff).
Assim, Catherine Earnshaw, como é demonstrado em diversos trechos do livro, é a típica heroína feminina; dona de uma personalidade forte, intempestiva, diferentes das outras crianças e moças de sua idade e por vezes mimada e egoísta – quando por exemplo, coloca seu bem-estar acima do amor que sente por Heathcliff para não perder o prestígio que possui diante da sociedade. Novamente: ela o ama. Mas não o suficiente para ser inteiramente feliz sem o luxo ao qual está acostumada e viver uma vida pacata longe de muitas regalias. Ela também mostra-se furiosa quando percebe que sua cunhada, Isabella, demonstra interesse por Heathcliff e ele, por sua vez, retribui como forma de vingança contra Catherine e Edgar. Esse traço do ego em sua personalidade é visto em momentos em que ela mostra-se desequilibrada emocionalmente nos momentos em que é contrariada ou tem seus caprichos negados, chegando quase ao ponto da histeria.
Enquanto isso, Edgar Linton, representado pelo superego, tende a agir com o máximo de bondade e mansidão, de modo a sempre pensar no bem-estar de sua esposa e em suas vontades e caprichos – o que faz com que Catherine compare Heathcliff e Edgar, e os sentimentos que nutre por ambos:
"[...] Meu amor por Linton é como a folhagem dos bosques: o tempo o transformará, estou certa disso, bem como o inverno muda as árvores. Meu amor por Heathcliff assemelha-se aos rochedos que jazem debaixo do solo: fonte de alegria pouco aparente, mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! [...]"
Por último, temos Heathcliff, representado pelo id, a parte tomada por impulsos e que, de forma inconsequente, circulam a história ao ponto de atingir não apenas a si próprio, mas também todos os outros ao seu redor pelo estranho e avassalador sentimento que nutre por Catherine. Contudo, apesar das atitudes contraditórias de quem, como muitos – incluindo a mim – veem como o vilão da história, a autora deixa espaços para que o personagem esconda-se atrás dos sentimentos por Catherine, enquanto os leitores perdoam suas atitudes pela premissa de que Heathcliff fez tudo o que fez em nome desse amor.
E é por isso que até hoje não entramos em acordo quando o assunto é rotular ou não a obra de Emily Brontë como sendo uma história de amor em sua forma nua e crua, onde o casal principal merecia um final diferente ou um romance que se transfigurou em uma paixão doentia e obsessiva, culminando numa série de tragédias e ultrapassando as barreiras além da vida. De um jeito ou de outro, sendo um romance ou não, não podemos negar que O Morro Dos Ventos Uivantes, mesmo após mais de dois séculos, é um dos maiores e melhores clássicos da literatura inglesa, com elementos góticos que permeiam as descrições dos cenários, o que contribui e muito, para a sensibilidade e morbidade que circulam por suas páginas.

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