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Entre o passado, o presente e o futuro: O que é viver? – A morte de Ivan Ilitch

  • odisseialiterariaa
  • 17 de nov. de 2023
  • 6 min de leitura

A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, foi publicada em 1886 e conta a história de Ivan, burocrata russo que leva uma vida convencional para a sociedade da época. O livro inicia com o recebimento da notícia do falecimento do protagonista por pessoas de seu convívio e sua família e, a partir disso, acompanhamos como tais indivíduos lidam com esse evento, que se destacam pela forma peculiar que reagem frente a condição de Ilitch.


Escrita nos anos finais da vida do autor, a célebre novela é considerada umas das obras primas da literatura russa e um marco para a carreira de Tolstói, que mergulha nas complexidades da existência humana e na inevitabilidade da morte. Assim, tal notoriedade ocorre em virtude da obra transcender seu contexto histórico e cultural, oferecendo uma reflexão profunda sobre questões universais.


Ao iniciar a narrativa com o acontecimento que dá nome ao título, o autor retoma o começo da vida do protagonista até desencadear a série de circunstâncias que acarretam a sua morte, a partir das mudanças que ocorrem quando é diagnosticado com uma doença incurável. A história examina não apenas a deterioração física de Ivan, mas também a sua jornada espiritual e psicológica enquanto confronta a certeza inescapável do fim da vida.


Filho de pessoas ricas e influentes, Ivan cresce em um ambiente permeado de regalias e privilégios e, ao adentrar o meio laboral, é indicado a um cargo no setor público e sobe rapidamente de posição no Tribunal de Justiça no qual trabalha. O personagem principal da novela segue quase religiosamente um caminho que acredita ser o ideal, frequentando diversas festas e lugares regados de aparatos luxuosos, sempre priorizando escolhas que proporcionavam algum benefício. Seguindo essa lógica, casou-se com Prascóvia Fiódorovna, a qual também pertencia à elite, apenas porque considerava o “correto” a ser feito. Contudo, dessa relação, além dos filhos, fortificaram-se frutos de amarguras durante toda a vida do personagem, os quais são evidentes por meio do distanciamento tanto físico quanto afetivo entre o casal, ainda que sejam, de certo modo, quase um reflexo um do outro, já que que ambos focam no materialismo em vez de outros aspectos da vida.


Com o passar dos anos, Ivan, em sua meia idade,adoece aos poucos de uma enfermidade que parece não ter cura, pois seu quadro de saúde piora e, à medida que isso ocorre, há o aumento de nuances reflexivas sobre a vida que levou até aquele momento e a angústia da morte.


“Talvez eu não tenha vivido como se deve. Mas como não, se eu fiz tudo como é preciso?”

Sob a construção do leito de morte de Ilitch, Tolstói nos convida a questionar de forma imersiva não os velhos questionamentos sobre “o que a vida?” ou “qual o sentido de nossa existência?”, mas sim “o que de fato é viver?”. Isso pode ser entendido ao longo das páginas, nas quais frente às aflições e às rememorações do protagonista, nos levam também ao questionamento se, assim como ele, vivemos da maneira correta.


A doença de Ivan passa a ser pano de fundo para um afundamento existencialista próprio do final do século XIX e início do século XX, a partir de correntes formadas por filósofos como Kierkegaard,Heidegger e Sartre, os quais abordavam temas como a vida e a morte. Nesse cenário,ao passo que acompanhamos o sofrimento do personagem e o medo crescente da proximidade da finitude de sua vida, imergimos, cada vez mais, em um plano de reflexões sobre a forma como ele viveu e vive até chegar face a face com a morte e talvez, de fato, encontrar a sua libertação ao lado da solidão de seus últimos dias.


Tal fato curioso atribui à obra grande relevância, pois, mesmo em poucas páginas, o autor é capaz de tecer não somente uma crítica à hipocrisia da sociedade russa e, por conseguinte, ao seres humanos no geral, como também adentrar questões imprescindíveis sobre fatores intrínsecos à vida humana. Perante às suas particularidades, Tolstói causa ao leitor estranhamento e até certa angústia ao percorrer o enredo,deixando elementos a serem pensados que fogem à superficialidade e deságuam em um plano ainda mais profundo: a alma.


Dentre os diversos elementos trabalhados pelo autor, ainda há espaço para abordar aspectos próprios do cotidiano, como a religiosidade, já que, em muitos casos, os indivíduos costumam acreditar em divindades e vivenciar ou praticar uma religião ou crença. Nesse sentido, Ivan, ainda que pouco praticante destes hábitos, indaga em um momento de desespero “onde está Deus?” E se este é capaz de tecer explicações para tudo que ocorre na ínfima existência dele.



“Tirou os pés da posição elevada, deitou-se de lado sobre o braço e teve pena de si mesmo. Esperou apenas que Guerássim saísse para o quarto vizinho, deixou então de se conter e chorou como uma criança. Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade dos homens, a crueldade de Deus, a ausência de Deus.
‘Para quê fizeste tudo isto? Para quê me trouxeste aqui? Para quê, para quê me torturas tão horrivelmente?…’
Ele nem esperava resposta, e chorava porque não havia nem podia haver uma resposta. A dor cresceu novamente, mas ele não se movia, não chamava ninguém. Dizia consigo: “Está bem, mais ainda, bate mais! Mas por quê? O que foi que eu te fiz? Por quê?”.

Assim, a crítica social presente no livro revela não exclusivamente a superficialidade das relações humanas, ao destacar a falta de empatia na sociedade, mas também a hipocrisia dos indivíduos, seja na forma como lidam uns com os outros, seja na maneira como tratam de suas crenças. Ademais, há também a exposição da solidão vivenciada não apenas diante da morte, como também a que cresce junto aos seres que, assim como Ivan, não conseguem firmar suas relações e dividir seus medos e angústias.


Em virtude disso, Tolstói se destaca entre os escritores russos, pois, em tão poucas páginas, consegue conceber um norteamento existencialista com magnitude, provando que a literatura ultrapassa o campo estético e atinge a magnificência da vida humana, proporcionando experiências literárias completas.



A Morte de Ivan Ilitch e a tese proposta por Martin Heidegger

Ao explorar a ideia da finitude da existência humana e os questionamentos sobre a autenticidade na vida, Tolstói entra em consonância com Heidegger, o qual argumenta que a consciência da própria morte é essencial para compreender a verdadeira natureza da existência. Nessa perspectiva, a obra oferece uma exploração profunda da mortalidade e da busca de significado na vida de Ivan Ilitch. A revelação da doença terminal de Ivan não apenas desencadeia uma reflexão sobre a efemeridade da existência, mas também o coloca diante da percepção dele mesmo e da forma como vivenciou seus dias terrenos.


“Lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse. Mas não existia mais o homem que tivera aquela experiência agradável: era como que a recordação sobre alguma outra pessoa. E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo.”

Tal conjuntura reafirma que, à proporção que Ivan se aproximava de sua finitude, também refletia acerca do seu crescimento e de suas relações. Seguindo essa lógica, ao passo que as angústias do personagem afloram, pode-se inferir a perspectiva de Heidegger, o qual abandona a linha teológica e pensa esses aspectos, que são exemplificados por meio das vivências finais de Ilitch, apenas como fenômeno existencial da finitude humana. Para o filósofo, a morte é inerente à existência humana, não o seu fim. Esse fato, como elemento fundamental, passa a ser crucial para nortear o sentido da vida.


A percepção do indivíduo diante da própria morte provoca uma reflexão profunda sobre a existência, levando o ser humano a confrontar-se radicalmente com sua própria essência. Tal como ocorreu com Ivan durante a obra, a consciência de sua situação, bem como de toda a sua vivência, comum diante da morte, engloba toda a sua existência, entre o passado,o presente e o futuro, consolidando o caminho pelo qual descobre a sua verdade e encontra a sua libertação.


“Todo o tempo minha vida deslizava sob meus pés.”

Isso se liga à discussão proposta por Heidegger quanto à importância de assumir individualmente o direcionamento da nossa própria existência, uma vez que a experiência da morte é sempre um evento pessoal e único. Dessa forma, o filósofo argumenta que a angústia perante a morte é, na verdade, a ansiedade diante da própria possibilidade de ser, o que pode ser encontrado na novela russa de Tolstói de maneira mais implícita, levando à auto reflexão do leitor. Com efeito, o trabalho desenvolvido por Martin Heidegger dentro da corrente existencialista assume um parâmetro abrangente, podendo ser associado a diferentes criações.


“Para que falar? Resta-me agir.”

Por fim, cabe elucidar, ainda, a importância da desmistificação da dificuldade de leitura de obras russas, em virtude desta que é objeto de inspiração para essa resenha demonstrar que obras clássicas podem ser lidas por qualquer pessoa, distanciando-se de estigmas comumente associados a estas. O livro de Tolstói é, sem dúvidas, uma obra prima da literatura, tendo em vista que, além da construção de uma alegoria social, toda a série de questões abordadas não se restringe apenas à época em que foi concebida, como está presente até a atualidade.


Perante ao exposto, caro leitor, pergunto: Entre o passado, o presente e o futuro: O que é viver?

ree

 
 
 

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Vitória Ribeiro
Vitória Ribeiro
May 03, 2024
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amo

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